Notícias

JUSTIÇA SOCIAL


"Defensoria Até Você - Edição Indígena": resgatando direitos e identidades

Mutirão leva até aldeias a possibilidade de atualização e emissão de documentos básicos para população indígena

Por Janaiara Soares e Isabela Mercuri
26 de de 2024 - 12:00
Bruno Cidade

Mais de seis mil atendimentos já foram realizados em menos de três anos de projeto.


Estar em terras estranhas, sem conhecer o idioma, sem acesso à saúde, educação e serviços públicos é uma realidade difícil para qualquer um. Agora, imagine enfrentar essas dificuldades sendo tradicionalmente os primeiros habitantes de um território. Esta é a dura realidade dos povos indígenas em grande parte de Mato Grosso, e foi esse cenário que despertou na Defensoria Pública a necessidade de ir até essa população. Em dois anos, foram realizados mais de 6 mil atendimentos pelo mutirão "Defensoria Até Você - Edição Indígena". 

Com Mato Grosso ocupando o terceiro lugar entre os estados brasileiros com maior população indígena, a realização da ação representa não apenas um evento de assistência jurídica, mas um marco na promoção da cidadania e visibilidade para esses povos. A iniciativa foi pensada em 2022 após uma reunião no então Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que tinha o interesse de realizar atividades em aldeias do estado. 

O projeto não aconteceu, mas o defensor público Fábio Barbosa, que esteve na reunião, sugeriu à Administração Superior da DPMT que fossem feitas ações junto aos povos indígenas do estado, e que, junto à Coordenadoria de Ações e Interações Comunitárias (CAIC), viabilizou o projeto. 

O maior problema identificado pela Defensoria Pública foi a subnotificação de registros da população indígena, que impacta diretamente no acesso aos serviços públicos, como matrícula escolar, atendimento na saúde e programas sociais do governo. Além disso, a instituição também identifica as necessidades gerais das aldeias para encaminhar aos órgãos competentes, como prefeituras e governo do estado.

De acordo com Luziane Castro, atual defensora-pública geral de Mato Grosso, o maior desafio da comunidade indígena ainda é o idioma. Ela, que era Secretária Executiva e ajudou a idealizar o projeto no ano de 2022, ressalta que levar todos os serviços até as aldeias é essencial, tendo em vista o custo e a dificuldade de locomoção até as cidades. 

Durante o mutirão, a DPMT oferece assistência e orientação jurídica, enquanto outros órgãos colaboram na regularização da documentação civil, incluindo a emissão de certidões de nascimento, RG, CPF e título de eleitor. Isenções para emissões de 2ª via e alistamento ou dispensa do serviço militar também são realizadas. 

“Imagina a dificuldade de cada um ter que sair da sua comunidade com um intérprete para ir atrás de um documento que muitas vezes tem que ir em vários lugares. E a realidade que levantamos é de que há muitos registros errados. O fato de a Defensoria reunir esses órgãos todos é de suma importância. Após o atendimento, efetivamente aquele indígena se torna um cidadão, apto para ser matriculado, para votar, para ser atendido em qualquer instituição”, ressalta Luziane Castro.

Luziane Castro, defensora pública-geral de Mato Grosso em atendimento no mutirão indígena.

Equipe do mutirão em atendimento na Aldeia Caçula, em Canarana.

O defensor público Fábio Barbosa, que representou a Defensoria no Conselho para Povos e Comunidades Tradicionais, explica que a alta demanda nos mutirões demonstra a necessidade de criação de um Núcleo Estratégico, o que não é desconsiderado pela Administração Superior, que nos últimos anos tem ampliado consideravelmente a estrutura da instituição, chegando atualmente a todas as comarcas do Estado. 

Mato Grosso teve um aumento de 37,1% no quantitativo de povos indígenas de 2010 para 2022, de acordo com censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Antes com uma população de 42.538 habitantes, o estado conta agora com 58.231 indígenas. A população indígena do país chegou a 1.693.535 pessoas, o que representa 0,83% do total de habitantes. Conforme o IBGE, pouco mais da metade (51,2%) da população indígena está concentrada na Amazônia Legal. 

"A questão de estrutura ainda é um desafio para a administração, que ainda tem 44 cargos vagos de defensores públicos. Para se criar o Núcleo Estratégico, é preciso ter um defensor à frente, assim como uma estrutura com assessoria e toda uma equipe. Continuaremos com nossos mutirões, não deixaremos de atender essas comunidades até ser possível ter uma estrutura específica”, diz Luziane.

MUTIRÃO EM AÇÃO

Um dos aspectos mais marcantes desses mutirões é o clima receptivo e caloroso com que os indígenas recebem a ação. Desde a sua chegada, os membros da Defensoria Pública são acolhidos com sorrisos e gestos de gratidão, evidenciando a importância e o impacto positivo desse evento na vida dessas comunidades. Os servidores que ali prestam atendimentos deixam de ser apenas visitantes e passam a fazer parte da comunidade, mesmo que seja por alguns dias. Com a gravata Xavante, adereço tradicional presente dos líderes indígenas aos colaboradores, os atendimentos são feitos de forma amistosa e acolhedora. 

A importância desse evento vai além da esfera burocrática. Francisco dos Santos Magalhães, conhecido como Chico da Funai, destaca que o mutirão não apenas regulariza documentações, mas também resgata a dignidade e a identidade dos indígenas. Ele ressalta as barreiras linguísticas e a necessidade de preservar a cultura indígena, elementos essenciais para a manutenção da identidade de um povo. 

“A questão da documentação para eles são muitas pendências, esse é o momento que regularizam sem custo algum, porque muitos precisam pagar e aqui têm a oportunidade da gratuidade e eles recebem com muito respeito e gratidão”, explica Chico. 

Este é o terceiro ano que o Mutirão "Defensoria Até Você - Edição Indígena" não apenas oferece serviços, mas representa um compromisso com a justiça social e a inclusão, trazendo luz às comunidades indígenas e resgatando suas identidades e direitos há muito tempo negligenciados. É um testemunho do poder transformador da solidariedade e do comprometimento com os mais vulneráveis em nossa sociedade.

Bau Xavante, 75 anos conseguiu regularizar documentação com a Defensoria Pública de Mato Grosso

Gerina Ro’otsisãmrã em atendimento com equipe da DPMT.

Bau Xavante, com 75 anos, viveu quase toda a vida na aldeia Caçula, localizada na Terra Indígena Pimentel Barbosa, no município de Canarana. Há muito tempo ele vinha enfrentando dificuldades de acesso à saúde e outros benefícios públicos, uma vez que seu CPF estava errado. O processo, que seria demorado, tendo em vista que a origem de sua documentação é de outro estado, acabou sendo rápido com o trabalho em conjunto da Defensoria e da Receita Federal durante o mutirão. 

Em seu idioma, em poucas palavras, ele afirmou comovido: “Agora as coisas são diferentes, na atualidade são fáceis. Fico grato por conseguir resolver meu documento”, traduziu o intérprete. 

Outro caso atendido pelo mutirão, que aconteceu durante os dias 22 a 25 de abril em Canarana, foi o de Tales Xavante, 8 anos, e Benjamin Xavante, 6 anos, que nunca frequentaram a escola por não terem a certidão de nascimento. O pai das crianças tentou algumas vezes, sem êxito, fazer o registro dos meninos, mas só com uma ação impetrada pela Defensoria Pública durante o mutirão e com liminar imediata, ambos conseguiram a matrícula na rede pública de ensino. 

“Muita dificuldade desde que nasceram, primeiro não conseguimos fazer o registro, depois foi ficando mais difícil. Agora, tenho certeza que tudo dará certo”, afirmou o pai, Rodolfo Xavante. 

Mais uma ação exitosa foi a de Gerina Ro’otsisãmrã, que desde 2011 vive com os tios e, por não terem a guarda, a jovem de 16 anos não conseguia emitir a documentação. A ação foi impetrada com o pedido de guarda provisória e no mesmo dia foi concedida decisão liminar, garantindo que ela pudesse ter a documentação feita no mutirão. Além disso, com a guarda, os tios podem assumir a responsabilidade pela jovem.

EMOÇÃO E RECIPROCIDADE 

Os dias de mutirão são marcados por muito trabalho e principalmente, muito aprendizado. Vinicius Fuzaro, defensor público em Alta Floresta, ressalta ser uma experiência única atender dentro de aldeias. A edição de 2024 foi a primeira que ele participou em oito anos como defensor em Mato Grosso. 

“Ver mais sobre a cultura, atender eles, buscar ajudar mesmo não falando nossa língua, é uma experiência muito interessante. Nunca tinha participado desse mutirão e é algo muito emocionante e único. Conseguimos atender e resolver problemas em um dia que demorariam muito tempo, ou que nem seriam resolvidos devido à distância. Essa forma de trabalhar, trazendo outros parceiros, garante o acesso a serviços básicos e agilidade”, afirma o defensor.

O indígena, como cidadão pleno, tem os mesmos direitos do cidadão não indígena, além daqueles direitos específicos garantidos pela Constituição Federal aos povos indígenas. A documentação civil básica (Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade - CI ou Registro Geral - RG, Cadastro de Pessoa Física - CPF e Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS) é sempre requisito para acessar direitos sociais e de cidadania, como direitos trabalhistas e previdenciários (aposentadoria, salário-maternidade e auxílio-doença), benefícios e programas sociais (Programa Bolsa Família – PBF, programas habitacionais, Programa Luz para Todos – PLpT), entre outros. 

O Cacique da Aldeia Caçula, Frederico Xavante, explica que o mutirão é um evento de grande importância para todos, e suprir a necessidade dos povos indígenas equilibra a balança da justiça social. “Agradecemos ao mutirão. Precisando muito desses serviços, são 23 aldeias na nossa região. Esperamos que tenha todos os anos. Não temos nem como agradecer”, disse o líder.

Clodoaldo Queiroz, que era defensor público-geral na época em que o projeto foi criado, explica que a população indígena de uma maneira geral, vive em localidades isoladas dos centros urbanos e por isso tem muita dificuldade de acessar aos serviços públicos. Esta situação, faz com que essa população demande que a Defensoria Pública esteja junto a ela, dentro das aldeias. 

"Essas pessoas por contra própria não teriam condições de acessar os seus direitos mais básicos como o registro civil, registro de nascimento, carteira de identidade e o acesso aos benefícios sociais. É isso que nós fazemos através do projeto Defensoria Até Você, são pessoas que são clientes potenciais da Defensoria Pública, que nunca chegariam aos nossos núcleos de atendimento porque vivem nessa situação de vulnerabilidade", ressalta o atual Secretário Executivo da instituição.