Defensoria Pública reverte decisão do TJ que obrigava ex-dono de carro a indenizar vítimas de acidente
30 de Maio de 2022 às 12:06
O caso aconteceu com um morador de Três Lagoas (MS), penalizado por um acidente ocorrido em Jaciara, com o carro que ele havia vendido dois anos antes. O veículo era conduzido por D., a quem o antigo dono não conhecia

A Defensoria Pública de Mato Grosso reverteu, no Tribunal de Justiça, decisão de primeira instância, mantida após agravo de instrumento, que obrigava um ex-dono de um Corsa, a custear um carro, com seguro, para as vítimas de um acidente de trânsito, pelo tempo do processo. O desastre ocorreu em oito de maio de 2021, em Jaciara. A decisão, agora reformada, desconsiderava o fato dele ter vendido o veículo, dois anos antes do acidente.
O beneficiado com a ação é o auxiliar de produção e motoboy, Rafael Rebouças dos Santos, morador de Mato Grosso do Sul (MS) que vendeu o Corsa Wind placa BKV 5233, Três Lagoas, em 15 de janeiro de 2019, conforme comunicação feita ao Departamento de Trânsito de MS. A liminar que o obrigava a fornecer um carro à família vítima do acidente, de 18 de junho de 2021, estabelecia multa diária de R$ 300, em caso de descumprimento.
Santos foi responsabilizado na ação de reparação de danos, com obrigação de fazer, aberta pelas vítimas do acidente na 2ª Vara Cível de Jaciara, em 17 de junho de 2021. Porém, quem conduzia o veículo na ocasião, era D. da S., que chegou a ser preso por embriaguez ao volante.
A defensora pública da segunda instância cível, em Cuiabá, Raquel Regina Ribeiro, que opôs o embargo de declaração, após o agravo de instrumento não surtir efeito, explica que o nome de Santos foi parar no Boletim de Ocorrência e no inquérito que apurou o acidente, porque o Certificado de Registro do veículo, único documento encontrado no carro, com o condutor, estava no nome de Santos.
Prova - A defensora lembra, no entanto, que no agravo de instrumento interposto pelo defensor público de Mato Grosso do Sul, Olavo Colli Júnior, em 21 de outubro de 2021, foi anexado um extrato de consulta feito ao Detran/MS, que informava a venda do veículo para José Roberto Anania de Souza. Colli esclarece na peça que Anania poderia ter alienado o veículo à D., que o dirigia, na hora do acidente.
O defensor de MS ainda explicou que Santos estava em Três Lagoas (MS), trabalhando, conforme declaração anexada no processo, um dia antes, no dia e um dia depois do acidente e que, não tendo vínculo com o fato, não tinha responsabilidade civil e não poderia ser penalizado a indenizar as vítimas, principalmente, com uma liminar.
Informou que ele cumpriu o artigo 134 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) apresentando cópia de documento de transferência de propriedade no Detran, logo, nem poderia responder solidariamente por qualquer penalidade aplicada ao condutor. Lembra que Santos não conhece D. e que, para fins de responsabilização civil, uma Súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirma que pouco importa a comunicação ao Detran, valendo mais a tradição.
Superior Tribunal de Justiça - “O enunciado da Súmula 132 do STJ estabelece que: ‘a ausência de registro da transferência não implica a responsabilidade do antigo proprietário por dano resultante de acidente que envolva veículo alienado’. Por certo, não há o mínimo probatório acerca da responsabilidade civil do agravante. Não o tem, por inexistir, porquanto seja certa a transferência veicular e, derradeiro, a isenção do dever de reparo”, argumenta o defensor.
Negativa - Porém, a inicial do agravo e o mérito foram negados pela Quarta Câmara de Direito Privado do TJ, alegando que o Santos não apresentou qualquer prova acerca da venda, junto ao Detran. A defensora esclarece que a negativa evidencia que a Turma se omitiu em avaliar o extrato de consulta ao Detran, apresentado no agravo, e ignorou o que diz a Súmula 132.
“Esse período estávamos com tudo fechado por causa da pandemia e não havia mesmo nenhum documento com timbre do Detran no processo, mas, conforme o colega defensor havia evidenciado, basta a Súmula 132 do STJ ser observada para que a injustiça de obrigar alguém que não tinha qualquer relação com o acidente e mesmo com o bem, conforme a tradição, fosse evitada”, argumenta Raquel.
A tradição da qual fala a defensora, é a que em direito civil estabelece que a posse garante ao possuidor do bem, a propriedade sobre ele. Como Santos garantiu que havia vendido, o extrato confirmava e o motorista do Corsa também, tais informações, segundo a lei, deveriam bastar para que Santos fosse excluído do processo.
Diante dos fatos, a defensora protocolou o embargo de declaração no dia 14 de fevereiro de 2022 e paralelo a isso, solicitou ao defensor de MS, um documento oficial do Detran, para juntar ao processo. Ela lembra que a irregularidade de trazer Santos para o conflito começou com o inquérito, se manteve na decisão de primeira instância e foi prolongada com a negativa do agravo, no Tribunal.
“O Rafael já tinha vendido o veículo, mostrou o extrato de consulta ao Detran, estava em Três Lagoas quando o acidente ocorreu e provou que trabalhava na data. Se no inquérito tivessem apurado em nome de quem o carro estava, descobririam que ele havia sido vendido para Anania. Rafael nem apareceria nesse processo. Dia 11 de março de 2022, o defensor Olavo me encaminhou ofício, com timbre do Detran, reafirmando que o Corsa havia sido vendido em 2019, conforme dizia a consulta”.
Condege - Raquel explica que o caso de Santos chamou a sua atenção por evidenciar o trabalho conjunto feito pelas Defensorias Públicas no país. “Somos um órgão estadual e por isso, nossa atuação é apenas no Estado onde somos lotados. Mas por causa de um convênio do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Condege) conseguimos atender pessoas carentes em todo o país, por meio de colaboração e isso é maravilhoso, me faz ter orgulho de integrar esse órgão”, afirma.
O acidente de trânsito ocorreu em Jaciara (MT), mas Santos é morador de MS e por não ter renda suficiente para pagar um advogado, procurou a Defensoria em seu estado. “Imagine, você está trabalhando - hoje Rafael não tem carro mais, trabalha formalmente e faz bico de motoboy à noite, para sustentar a família - e recebe uma notificação informando que responde processo por um acidente, num lugar onde nunca esteve e tem que custear o aluguel de um carro, para uma família?”.
A defensora lembra que com o trabalho conjunto, conseguiu restaurar a Justiça para o trabalhador. “Por um equívoco, por falha no trabalho de vários profissionais, esse trabalhador responde a um processo e graças a uma força-tarefa que envolveu o defensor de outro Estado, o defensor de Jaciara, Denis Thomaz Rodrigues e a segunda instância, conseguimos restaurar a Justiça. Sou da primeira turma de defensores e tenho orgulho de estar nessa profissão a cada dia”, concluiu.