Alívio e gratidão, são estes sentimentos que permeiam o dia a dia de Vanilda Inácio Monteiro e sua família. Ela e o marido residem em um pequeno sítio localizado no Distrito de Conselvan, zona rural do município de Aripuanã (960 km de Cuiabá). A vida por lá era tranquila, até o começo de uma longa disputa judicial que quase terminou com o despejo de Vanilda e diversas outras famílias da região. Porém, com a ajuda do Sistema de Atendimento Fundiário (SAF) da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso (DPEMT), a história teve um final feliz.
Vanilda e o marido são de Rondônia. Junto dos dois filhos, eles chegaram em Conselvan há mais de 10 anos. Assim como as cerca de 90 famílias que residem no local, com muita luta eles conseguiram comprar um pequeno pedaço de terra e construir a casa onde moram. Certo dia, uma grande empresa passou a reclamar a propriedade da terra e pedia em juízo que uma parte das famílias que estavam ali instaladas fossem despejadas.
“Quando chegamos, aqui tava tudo derrubado, nós moramos num barraco por dois anos, só depois construímos uma casinha. Aqui plantamos café, milho, abóbora, criamos porco, galinha, tudo pra vender e também pra consumir aqui mesmo. (...) Quando surgiu a história de sair daqui, todo mundo ficou desesperado, ninguém conseguia mais dormir e nem ficar sossegado”, conta Vanilda.
Em 2023, o processo foi encaminhado pela Vara Regional Agrária de Cuiabá para a Comissão de Soluções Fundiárias, em conformidade com a Resolução nº 510/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regulamenta a criação de comissões nacionais e regionais de soluções fundiárias, que atuam para evitar ações violentas e incompatíveis com a dignidade humana. A mediação de conflitos é usada para pacificar situações em que existam ordens de despejos ou reintegrações de posse envolvendo populações vulneráveis.
Duas audiências já haviam sido realizadas no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), no Fórum de Aripuanã, mas nenhuma delas teve resultado satisfatório. Como a Defensoria Pública participa da Comissão Regional de Soluções Fundiárias, uma equipe da DPEMT foi até o Distrito de Conselvan aplicar o Sistema de Atendimento Fundiário (SAF), um instrumento criado pela Defensoria que reúne informações detalhadas sobre as famílias que residem no local.
Colhendo dados como número de residentes na habitação, renda familiar, documentação acessível, qual tipo de produção do local, e tudo mais que possa estabelecer um quadro social de cada família, o SAF ajuda a garantir que o Poder Público atue com mais eficácia para proteger e garantir o direito à moradia, especialmente daquelas que já formaram vínculos e raízes nos territórios onde vivem. Todas essas informações são utilizadas para que os litigantes tomem as melhores decisões durante os processos judiciais.
“Foi feita a inspeção na área pelo juízo local de Aripuanã e o relatório disse que somente duas famílias eram vulneráveis na área. Mas esse relatório foi feito com base em amostragem, o juízo fez uma visita em cerca de 10 residências, em uma área em que tínhamos algo em torno de 90 famílias, portanto, a metodologia seria por porcentagem, ou seja, 20% das casas ou dos lotes visitados seriam pessoas vulneráveis. Com base nisso, a Defensoria foi até o local para aplicar o SAF. Nós conseguimos levantar que ali existiam 55 famílias vulneráveis. Reunimos informações para iniciar as tratativas com a parte contrária”, conta o defensor público Fábio Barbosa.
Com essas informações recolhidas pelo SAF, as partes firmaram um acordo judicial que foi homologado pelo juízo de Aripuanã. Na sessão de conciliação, que durou 14 horas, a empresa que alegava ser dona das terras, garantiu que iria manter as famílias que assinarem o acordo na área, em 50,82 hectares de terra, na comunidade de São Jorge. E que, aqueles que tiverem área maior que os 21 alqueires, serão indenizados pela terra excedente e pelas benfeitorias, após visita ao local e avaliação mercadológica.

Mais de 40 famílias foram beneficiadas pelo acordo e puderam viver em paz na sua terra, continuando a plantar e colher como forma de subsistência e para ajudar nas despesas de casa.
Para Vanilda, o alívio de saber que poderá morar tranquilamente em sua terra é algo imensurável: “Nós lutamos aqui pra deixar como tá, pra plantar nossas coisas. Até fazer tudo isso de novo, não tem como. Hoje me sinto mais aliviada, ficamos com mais coragem pra trabalhar e cuidar das coisas. Não posso reclamar que eu vivo mal, aqui eu vivo bem. Se eu sair daqui, aí eu vivo mal, mas aqui é meu lugarzinho. Eu não sei nem falar o que ia acontecer se tivesse perdido isso aqui. Já estamos velhos, como vou trabalhar na rua? Eu sou aposentada, como vou arrumar serviço? A Defensoria fez diferença, porque nunca veio ninguém aqui, a Defensoria foi a primeira. Pra nós isso é um sonho, porque antes não tínhamos um pedaço de terra”.
O defensor público Fábio Barbosa conta que o SAF, utilizado no projeto Território de Direitos, foi inspirado pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que trata da proteção contra despejos forçados. Portanto, o sistema não é uma garantia de vitória processual, mas sim, um instrumento de auxílio para atingir melhores resultados.
"Quando você tem a ADPF 828, que vai trazer uma garantia de direitos fundamentais dessas famílias, estamos falando aqui de um mínimo de dignidade existencial para essas famílias, portanto, quando conseguimos produzir esses dados, nós estamos materializando essa garantia. É uma uma roda que tem toda uma engrenagem. Você tem essa garantia determinada lá no comando normativo do preceito normativo da decisão do STF que depois é regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça. O que o SAF faz é materializar isso, sendo uma ferramenta importante para uma mediação, para a parte contrária, que muitas vezes tem uma decisão judicial nas mãos, tem uma liminar ou uma sentença, e que agora a coisa muda um pouco de figura. O SAF é uma ferramenta que instrumentaliza, mas não é um salva vidas", afirma o defensor.
Documentário – No início de agosto, a DPEMT lançou o documentário “Território de Direitos” contando como surgiu o projeto e também histórias de comunidades que foram impactadas pela iniciativa. A obra audiovisual é o primeiro documentário produzido exclusivamente pela instituição.
Todas as imagens e entrevistas foram realizadas pela equipe da Diretoria de Imprensa e Comunicação Institucional da Defensoria Pública durante os mutirões do projeto Território de Direitos. Por meio de entrevistas com defensores públicos, servidores e, principalmente, com as pessoas defendidas pela instituição, o documentário oferece um olhar humano sobre os impactos reais do projeto, indo além dos aspectos jurídicos para evidenciar histórias de vida e resistência.
O documentário pretende dar visibilidade à luta de quem vive no campo ou em áreas urbanas periféricas, muitas vezes esquecidas pela sociedade. O material dá a oportunidade para a população conhecer um dos papéis da Defensoria Pública de Mato Grosso na defesa de direitos fundamentais.